CARLOS ROSA MOREIRA
CARLOS ROSA MOREIRA
Membro do Cenáculo Fluminense de História e Letras, da Academia Niteroiense de Letras e da Associação Niteroiense de Escritores. Tem oito livros publicados, todos de crônicas e contos.

Por: CARLOS ROSA MOREIRA

02/06/2023

08:21:52

CONCEIÇÃO

Meu pai havia parado sobre um monturo de terra e o jipe parou ao lado. Uns cem metros adiante o ônibus não pôde continuar; arremeteu, fuçou, patinou, soltou fumaça e acabou preso naquele lamaçal, meio cambado para a direita.
CONCEIÇÃO
O motorista desceu com alguns passageiros, examinou as rodas atoladas e entrou no ônibus. Os passageiros empurravam o bicho enquanto ele acelerava lá de dentro, mas o ônibus não saiu do lugar. O homem do jipe, assim como o meu pai, olhava aquilo e analisava a situação; de repente engatou a marcha, acelerou e partiu para cima da lama. Caiu numa sopa grossa, espadanou água e terra por todos os lados; deslizou para a direita, saiu de banda para a esquerda e atolou de vez em montes de um barro mole e pegajoso.

 As rodas traseiras giravam frenéticas no mesmo lugar, giravam
como se girassem no ar.  Começou a cair
uma chuva fina. Alguns passageiros do ônibus foram ajudar o jipe e outros perambulavam
pela estrada, um deles chegou até o nosso carro. O Studebaker era valente, meu
pai pensou em enfrentar o lamaçal, mas depois da desventura do jipe permaneceu
agarrado ao volante com a cara colada ao vidro, imaginando o que fazer. O
passageiro do ônibus puxou assunto com ele:

            ‒ Se eu fosse você, dava meia-volta,
andava um pouco pra trás e cortava pelo Chico Tobias. Lá num faz essa lama.

            Meu pai conversou um pouco com o homem, depois girou a chave e deu meia- volta.

             Nesse dia conheci outro caminho para Conceição. Tão bonito quanto o principal, bordejando as meias-laranjas transformadas em pastos com chumaços de mata no cocoruto. Naqueles meus poucos anos achava a viagem para Conceição a mais linda do mundo. Lembro-me de que minha mãe ligou o rádio do carro, e a canção combinou com a paisagem: tocava Olhando
para o céu.

            Eu dormia no quarto da frente da casa dos meus avós paternos, numa cama junto à janela que dava direto para a calçada. Na manhã seguinte à nossa chegada, a primeira manhã das grandes férias de verão, os trinados de advertência dos bem-te-vis me acordaram. Até hoje tenho na memória os chamados matinais dos bem-te-vis pousados no bambuzal do morro logo acima do prédio da Lyra. A chuva tinha ido embora e o céu de Macabu despejava seu azul sem igual sobre o
verde, e o verde brilhava e aconchegava Conceição, parecia protegê-la, aninhando-a num berço colorido e alegre.

            Meu avô já havia saído para o trabalho. Durante décadas fez e refez o curto trajeto de sua casa à Farmácia Moreira. Eu tomei café com leite acompanhado pelo pão e pelas roscas salgadas
da padaria do Itamar, e saí. Do outro lado da rua, no quintal da  casa dos meus bisavós maternos, o jambeiro mostrava tentadores pontos avermelhados; e debruçado sobre o muro, o pé de abiu
espalhava seus galhos com frutos polpudos precocemente amarelos. Minha bisavó Mariana me acenou da janela; quase ao mesmo tempo meu bisavô Etelvino chegava a cavalo. Às vezes ele me dava umas pratas e eu ia direto à venda do Jonas comprar bolas de gude. Eu guardava as bolebas num saquinho de filó. Tinha uns olhinhos lisos, brilhantes e sem jaças, além de várias gudes comuns. Somava isso tudo às sementes negras do fruto da saboneteira que havia bem na esquina da praça, em frente ao armazém do Laerte. Aquelas bolinhas negras não valiam tanto quanto as gudes, mas eram aceitas no jogo.

            Em torno da praça e nas ruas adjacentes, da ponte de madeira na entrada da cidade até o caminho para Vila Nova, e ao longo da linha do trem da estação à Usina, as casas se avizinhavam,
irmanavam-se geminadas ou se separavam por breves quintais ou corredores para logo em seguida se unirem outra vez parede com parede, formando um todo harmônico, no qual a altivez de um ou outro sobrado ou a largueza de uma chácara arborizada dava o toque necessário, quebrando a uniformidade sem desfazer a harmonia. Eram fachadas singelas, limpas, em tons pastel, sem
ostentação nem riqueza; fachadas agradáveis, de casas onde viviam famílias que se conheciam, se entrecruzavam, se cumprimentavam e conviviam, criando o dia a dia com seus dramas, seus amores e todos os sentimentos que perpassam o coração humano, seja aqui, seja em qualquer cidade do mundo. Quem entrasse em Conceição e contornasse a praça encontraria a igreja e a estação de trem. E poderia ter a impressão de que todo aquele casario ali se iniciava, ou terminava. A igreja e
a estação... De certa forma, o alfa e o ômega. A simplicidade das casas formava as ruas de Macabu. Tornava-as aprazíveis, pois em nada discordavam do seu tempo e do seu meio.  Tenho essa Macabu em minhas lembranças desprovidas de nostalgia, porém saudosas da estética modesta, mas plena de personalidade.



            Conceição de Macabu é a terra do meu pai e dos meus avós. Antigamente, todo mundo se conhecia, e o meu pai, filho de Melita e Helvécio Moreira, era o Zé Carlos de Melita; eu era o menino de Zé Carlos de Melita. Era assim, dessa forma, que as pessoas costumavam falar. Toda a infância do meu pai foi passada em Conceição. E durante sua vida jamais deixou de visitar sua terra. Foi ele que me ensinou a conhecer papa-capim, avinhado e tié; o pio da juriti e do nhambu: “Minha Conceição de Macabu onde cantava o nhambu”, dizia ele sorrindo. Eu gostava
quando saíamos de carro pelas estradas de Conceição. Ia conosco o meu tio Menininho, conhecedor de tudo e de todos. Desbravei as entranhas de Macabu com meu pai e meu tio. Lembro-me das fazendas, dos pontos bons para banho nos rios, da Amorosa, das histórias e lendas, das florestas na divisa com Santa Maria Madalena, onde certa vez um matuto nos mostrou rastros de onça no quintal de sua casa. Naquela época o tempo andava no compasso de boi cangueiro, e o meu tempo não era muito diferente do tempo do meu pai. Aprendi com ele a fazer bodoque e atiradeira,
que ele chamava de seta. Bodoque já era coisa antiga, e eu preferia a atiradeira, pois o bodoque demandava cuidados; se não houvesse atenção, a mão que segurava o arco levava cada lambada que fazia a gente ver estrelas ao sol de meio-dia do verão de Macabu. Meu avô Helvécio ainda era bom no bodoque, e o seu irmão, meu tio Carlos Moreira, não perdia um tiro de seta.

            ‒ Gancho bom é de goiabeira, mas o de leiteira é ainda melhor ‒ ensinava meu pai. E ia comigo procurar leiteira no barranco do Morro da Mijada. Aprendi com ele a fazer bolinhas de tabatinga e secá-las ao sol, tornando-as excelentes petardos. Quase todo menino tinha uma
atiradeira pendurada ao pescoço. Eram tempos em que não se conhecia a palavra ecologia. As histórias de caçadas povoavam as conversas e a nossa tenra imaginação.

            Lembro-me das manhãs dos verões de Conceição... O verde resplandecia ao sol e o capim-gordura exalava seu perfume. A passarinhada enchia o ar de voo e de canto. Os marimbondos, pequenas e amedrontadoras harpias, zumbiam por todas as direções. Meus companheiros e eu
subíamos o morro do Coronel ali pelo terreno da farmácia do Evaristo, passávamos pela trilha por trás da casa de D.Maria e rompíamos até a Bocaina, para lá da caixa d’água. Eu tinha um medo de cobra que me pelava, mas os meninos de Conceição pareciam temer mais os lagartos. Acreditavam que se um lagarto mordesse alguém e bebesse água antes da pessoa mordida, essa pessoa
morreria; mas se a pessoa bebesse água antes, seria o lagarto a ir desta para melhor! Eu desconfiava dessa história, mas preferia passar longe dos lagartos. Havia um trecho de capim baixo que beirava o morro por trás da farmácia do Evaristo e seguia paralelo à estrada para Vila Nova, depois afilava entre a estrada e o morro e terminava em pastos e sítios. Em algum ponto daquele trecho morava um homem que curtia couros. Ele estendia couros de boi em varas e os colocava para secar naquela pequena planície de capim baixo. Na minha imaginação infantil, aqueles couros que nos surpreendiam em meio às nossas explorações se pareciam com as imagens das aldeias indígenas dos filmes e dos gibis do velho oeste americano. Naquela época, os filmes de cowboys e índios e as aventuras de Tarzan enchiam de espectadores o cinema de Conceição. Frequentei muito o velho cinema com cadeiras de madeira, em frente à linha do trem. Cheguei a conhecer o teatro, mas recordo-me vagamente de uma peça ou evento.

             Em frente à casa dos meus avós paternos, Helvécio e Melita Moreira, ficava a residência do Coronel Etelvino e de D. Mariana Gomes, meus bisavós, avós da minha mãe. A casa perdeu o quintal, mas ainda está lá, espremida entre muros com aquele morrão bonito atrás, “o morro do
coronel”. É uma das poucas residências antigas conservadas, testemunha da arquitetura simples e suave que enfeitava as ruas de Conceição. Nos fins das quentes tardes de verão, meus bisavós se sentavam em cadeiras de vime na varanda para “tomar a fresca” e conversar. Um ou outro passante parava, dava dois dedos de prosa e seguia. Eu era criança e criança naquele tempo não participava de conversa de adulto, mas ficava em volta, prestando atenção, e até hoje aquelas queridas vozes, aqueles assuntos tão familiares, tão de Conceição, fazem parte das minhas lembranças.

            O cair da tarde vinha repleto de perfumes. Perfume de banho, perfume de comida temperada. As famílias cumpriam quase o mesmo ritual diário e o cair da tarde era hora do banho e do jantar. Quando a noite ia alta, as ruas exalavam seu autêntico perfume: fragrâncias das
matas, cheiro de excremento fresco de bois e cavalos misturado à terra úmida pelo orvalho, aroma de couro e das velhas madeiras das casas de Conceição. Em torno das lâmpadas amareladas dos postes esvoaçavam milhares de insetos, morcegos davam rasantes e um ou outro cão passava trotando. A gente ouvia pio de coruja e o silêncio se deitava sobre a cidade, às vezes entrecortado por um latido distante.

            Tenho alguma lembrança do trem de passageiros, vaga recordação de uma viagem. Eu gostava de andar na linha do trem, seguir sobre ela até a usina. De lá olhava em torno aqueles montes, procurando, talvez, os olhares dos meus antepassados. Aquelas terras foram do meu trisavô, Antônio Manoel Tavares, que doou parte delas a Victor Sence para construir a usina que traria progresso a Conceição. Antonio Manoel Tavares e sua esposa, minha trisavó Rosa Valentim Tavares, pais da minha bisa Mariana, foram os primeiros a libertar escravos na região. Eram senhores bons, donos da Fazenda Santa Rosa, imensa quantidade de terra que sumia lá para as bandas do Norte.

            Havia as boiadas que atravessavam a cidade, tangidas pelos vaqueiros armados com o garruchão de ponta de ferro, enfeitado com um chumaço de pelos dos animais. Alguns vaqueiros apoiavam o cabo do garruchão no estribo e o seguravam feito uma lança, e eu achava aquilo
bonito de se ver. Às vezes, algumas reses rebeldes se desgarravam e entravam por algum portão aberto, provocando gritos, correria e manobras audaciosas dos vaqueiros sobre seus cavalos. Era um espetáculo a passagem das boiadas. Todos os dias os carros de boi carregados de cana também atravessavam a cidade. Vinham naquela modorra, vagarosos e rangedores. Carro de boi que não rangesse não era carro de boi. Vinham lá da estrada, passavam em frente à entrada da Bocaina, pelo pequeno posto de gasolina e entravam na cidade pela ponte de madeira sobre o riozinho de águas cristalinas. Brincávamos muito no rio. Descíamos junto à ponte e andávamos pelas águas rasas passando por trás de quintais até a beneficiadora de arroz. Fazíamos represas com tabatinga e
pegávamos piabas, carás e cascudos com a mão. Mas lá vinha o carro de boi cheio de cana entrando na cidade. Passava em frente à barbearia do Santo, à casa de seu Moreira e D. Anna Moreira, à padaria do Félix; vinha tocando em frente, parecendo sem muita vontade de ir. Passava pela loja do João Gaspar, pela do Noel, pela oficina de sapateiro do Boneco, pela casa de Gabriel, pelo templo
protestante, pelo posto de saúde e, às vezes, dava uma paradinha para descansar à sombra de uma árvore, por ali mesmo, diante da casa de uma família árabe. Mal parava, continuava, passava diante do armazém do Laerte e seguia na direção da estrada de Vila Nova, deixando para trás as casas do Coronel e de Sinhá Mariana, o armazém do Jonas, a casa de seu Helvécio e D.Melita; de D.Zinha
Picanço e da professora Arinda, do pessoal “da luz”: Antonelli e D.Lalaia, seu Mamede e família; a casa de D.Maria e depois a farmácia do Evaristo. Lá vai o carro de boi... Vejo-o ainda hoje, sumindo na estrada... Não havia garoto que não corresse atrás de carro de boi para arrancar talos da boa cana de Conceição, descascada com os dentes e chupada ali mesmo, nas sombras das
árvores da praça.

            No meio daquelas tardes quentes havia a chuva. Começava com uma roncação, e os mais velhos diziam que São Pedro estava arrumando os móveis. Eu já não acreditava nisso, mas fazia a imagem de São Pedro com longa barba branca e de camisolão, andando para lá e para cá lá
no céu. O céu escurecia. Chegava então o cheiro bom de terra molhada. Lugar nenhum do mundo tinha aquele perfume antes da chuva, só Conceição. Aí caia um pingo grosso de matar formiga, depois outro e outro e, de repente, uma cortina translúcida e refrescante desabava sobre os telhados. Cascatas pardacentas desciam dos morros e pequenos riachos corriam junto ao meio-fio, mas, aos
poucos, aquela força amainava, o céu parava de roncar e ainda se abria para o azul de resto de tarde. O ar se tornava fresco, as cigarras cantavam e pessoas saíam às ruas. Teve um dia em que a chuvada pegou meus amigos e eu bem no meio da praça. Encharcados e felizes como só as crianças sabem ser num banho de chuva, mergulhamos no velho laguinho. Era um laguinho quadrangular de bordas cimentadas e pintadas de branco, cheio de vitórias-régias na superfície de suas águas esverdeadas.

            Existiam duas palavras que eu só ouvia em Conceição: cabrunco e catirina. Cabrunco era xingamento ou expressão de desabafo ou aborrecimento; catirina era o que eu chamava de palhaço, palhaço de carnaval. E eram bons os carnavais de Macabu...

            Lá em casa tem um bigorrilho, bigorrilho fazia mingau... Vamos pro mato caçar, companheiro, pro mato caçar, oi! Sá Mariquinha o negócio é descer, Sá Mariquinha o negócio é descer! 

            Eu era criança, carnaval para mim era observar a folia dos mais velhos e levar corrida de catirina. Minha mãe, Therezinha, filha do farmacêutico mineiro Jair Rosa e de Cilá Gomes, a filha
mais velha do coronel Etelvino e de D. Mariana, conhecia todo mundo e se esbaldava no carnaval. Lembro-me do carnaval de 63... ou terá sido 62? Foi num desses da primeira metade dos sessenta. As catirinas andavam pelas ruas debaixo do sol quente, e nós, as crianças, mexíamos com elas. E tome de levar carreira de catirina! Minha mãe, umas primas e amigos organizaram um bloco, cuja fantasia era de “carrasco”. A farra do bloco foi no cruzamento em frente ao Hotel do Siqueira. Bloco, catirinas, crianças e foliões se juntaram ali numa pulação animada. Havia também o carnaval no clube, a velha sede desativada. Tinha baile e desfile de fantasia com julgamento, nota e premiação. Naquela longínqua tarde de um carnaval macabuense, o vencedor foi um rapaz de nome Sérgio, cuja bonita fantasia representava um príncipe russo. Lembro-me do Sérgio desfilando na
passarela do clube: digno, elegante, aplaudido.

            Conceição... A cidade dos meus avós cresce, suas estradas e ruas são asfaltadas, já não se atolam os carros. E, a exemplo da maioria das cidades brasileiras, vai se desprendendo de seu passado. Já não tenho parentes em Conceição. Alguns estão nos nomes de ruas ou de algum prédio público, como meu bisavô, o coronel Etelvino Gomes, e minha bisavó Anna Barbosa Moreira. Mas a terra está em mim, sou um pouco Conceição de Macabu também. Às vezes vou até lá pelo simples prazer de ir. E “dialogo” com meus avós, parentes e conhecidos. A cada vez meus olhos precisam ficar mais atentos, pois minha conversa é conversa de velho e sinto necessidade de buscar velhas janelas, fachadas de antigamente ou um certo brilho inclinado de um sol da tarde. Mas Conceição sempre conversa comigo, sempre me faz sentir bem. É uma característica da cidade fazer as pessoas se sentirem bem. Não sei exatamente por quê, mas talvez sejam os morros que envolvem Conceição, aqueles morros que parecem abraçar a gente.

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