
Por: CARLOS ROSA MOREIRA
09/01/2022
09:37:08
À SOMBRA DO MORCEGO

Eu lembro, Luísa. Lembro também que apresentei o velho Marcel a você e você leu todos aqueles volumes, houvesse chuva ou sol. Até o Piratã sentiu sua falta, deixado dias seguidos na solidão da poita. Pois é, neste momento tenho as minhas “madeleines”: são essas nuvens algodoadas que trouxeram você. O verão se foi e o sol vai ficar mais manso e bonito. Estou naquele promontório em frente à barra. É uma vista estupenda; sinto-me tão rico, Luísa, tão rico! Sei coisas do céu e do mar, conheço os ventos, subi todas as montanhas ao redor e nadei muitas vezes em torno das ilhas que brilham ao sol. E tenho a sua lembrança chegando suave, agradável como a sombra dessa amendoeira que me protege. A maré começa a encher, as águas mais azuis do oceano encontram as águas da baía e formam uma linha quase regular na altura da Ilha da Laje. Se velejássemos em mar aberto, seria fácil entrar agora pela barra; nem precisaria motorar. Aonde você anda? Faz tempo um amigo disse que estaria nos Estados Unidos, fazendo companhia a uma filha. Penso no seu rosto, no seu olhar firme a examinar as velas e os estais do Piratã e imagino que sua filha deve ser parecida com você. Tem velejado? Passa-me na lembrança aquela noite quando voltávamos de Angra. O Spring recém-comprado era bom barco, mas tinha a tendência de mergulhar a proa nas ondas formadas pelo ventão que nos pegou de madrugada na altura da Marambaia. Subia água por todos os bordos. Sorte que o marinheiro contratado para trazer o barco era um lobo do mar. Você teve a coragem de enfrentar o convés lavado pelas ondas e ir lá na proa enrolar a genoa, enquanto eu só fazia passar mal. Naquela noite amei você e receei que me desprezasse, eu não passava de um trapo encharcado e quase inútil encolhido no cockpit. Mas após seu ato de coragem você sorriu para mim e me afagou o rosto. Depois houve tanto mar...
Vejo um veleiro
indo na direção da Fortaleza de Santa Cruz. Recebe esse vento de sul e está
adernado para bombordo. Seríamos nós, num dia qualquer de antigamente. Mas eu
trocaria todos os dias, todas as navegadas por um só dia, aquele de mar quase
sem vento, quando penamos numa chatice de regata. Fizemos uma “perna” audaciosa
e deixamos a Praia de Adão para trás, mas acabamos na “sombra” da Pedra do
Morcego, um lugar onde as velas panejam. A água estava clara e víamos as pedras
no fundo, cobertas por grandes colônias de mariscos. “Vamos ficar aqui!”, disse
você enquanto lançava a âncora. Depois tirou a bermuda, a blusa e ficou de
biquíni. Deitamos no convés, de olhos
fechados, à sombra do Morcego. “Parece um céu estrelado...”, ouvi você dizer
num sussurro. Olhei para cima e vi o azul leitoso com nuvens cinzentas ao
norte. “Estrelas...?”, repeti, mas logo percebi: você falava dos infinitos
estalidos no casco do barco, causados pelos milhares de seres marinhos.
‒ Que romântico...
Você abriu os olhos, descolou o
rosto da almofada e olhou para mim com uma expressão lindamente feminina, meio
de sono, meio de desejo.
Quando retornamos, as luzes do clube
já estavam acesas.
Deste promontório não avisto a Ponta
do Morcego. A Boa Viagem e a entrada da barra ocupam toda a minha visão.
Recorro à memória para ver as pedras daquele trecho sem vento, e o dia em que
ficamos parados, Luísa, na calmaria do mar e do tempo.
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